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Qualquer semelhança com o futebol

19 de agosto de 2018 - conto
Qualquer semelhança com o futebol

Qualquer semelhança com o futebol

Conto apocalíptico

Início do século passado. O samba estourava no Brasil. Enfim, ganhava reconhecimento em todos os cantos. Inclusive os cantos do mundo. Então sucederam-se décadas de encanto mundial por nosso ritmo genuíno, provavelmente o único que possa ser corretamente tocado apenas por habitantes brasileiros (de nascença ou de frequença).

Eis que no fim daquele mesmo século, ritmos europeus começam a desembarcar no gosto da rapaziada. Polcas, xotes e valsas ressurgem atualizados pelo talento de produtores ingleses, franceses, alemães e ex-soviéticos também. O eixo Rio-SP volta suas atenções para os ritmos renovados do velho mundo. Alguns proeminentes produtores musicais de nosso país viajam para a Europa com a intenção de beber naquela fonte de juventude musical. Ao retornarem para o Brasil-natal, a comunidade musical constatou que eles haviam chegado de lá cheios de si, e também de sol, fá, mi, ré e relativo dó de voltar a morar aqui. Um destes visionários produtores musicais, numa manhã tenebrosa, descendo a Serra de Petrópolis com um amigo do ramo, esse amigo do ramo falou: estou cheio de falta de inspiração! Pobre amigo esse, que apesar de ser do ramo, não tivera meios de se enturmar na caravana da Europa. Mas foi então que essa experiência no primeiro mundo europeu começou a se fazer presente nas produções de discos e grupos de samba por aqui. A começar pelo Rio de Janeiro, local do talento puro, e depois São Paulo, local do trabalho duro.[1]

A cuíca, por exemplo, já não poderia ser usada com a mesma liberdade de outros tempos, por ser considerada muito manhosa. Podia pegar mal. E o mercado globalizado não admite certas selvagerias. A cuíca estava no rol dos instrumentos considerados muito rudimentares para representar nosso maior patrimônio musical. Ficou resolvido que apenas a cuíca MIDI poderia fazer parte do arranjo. A versão original era coisa de museu. O tan tan, genial invenção de Sereno, do Fundo de Quintal, no terreno sagrado do Cacique de Ramos, foi sabotado: registrado sob patente estrangeira, somente poderia ser comercializado em lojas de revenda autorizadas pelo Kassik de Häms, na Alemanha. Mas até aí tudo bem. O bicho pegou mesmo quando foi registrado, quase que simultaneamente, na 14ª DP (Leblon) e na 29ª (Madureira), um sinistro: haviam sumido com o suíngue do samba. Os eminentes produtores musicais foram apontados pela crítica especializada como os responsáveis pelo ato. Todos os acusados se entregaram, assumiram o feito, e justificaram-se mediante o uso de cases e termos importados da Europa (a maioria em inglês) deixando boquiabertos os responsáveis pela investigação. Saíram de lá condecorados com discos de platina pré-pagos e sob os aplausos atônitos de todos os presentes, inclusive os profissionais da imprensa. Só o escrivão da 29ª, que era um baita pandeirista no Pagode da Calçada, expressou certo desprezo pelo seleto grupo. Em São Paulo, quando a notícia chegou já tinha deixado de ser notícia e virado uma tendência. E de Sampa a transformação se espalhou pelo Brasil. O improviso era agora proibido. Em certos casos, considerado um ato insolente, coisa de moleque mesmo. “Ô Cascadura, segue a partitura!”, ameaçava um produtor paulistano, fazendo graça com o apelido de um jovem músico recém chegado da Zona Norte do Rio. Na Companhia dos Técnicos, em Copacabana, tudo era novidade: “O esquema agora é o pagode 3 x 4 rapaziada”, e os músicos mais experientes se entreolhavam na suspeita de que um samba em 3 x 4 não seria mais um samba. Os mais novinhos logo se aplicavam e puxavam o coro. E a velha guarda – fazer o quê – se resignava. Obviamente que houve conflitos. Muitos se recusaram a tocar, como por exemplo quando, no meio de uma sessão de gravação em um estúdio na Barra da Tijuca, a produção determinou que o surdo fosse substituído por um tímpano da Contemporânea (made in Brazil!). Clima muito tenso e a ameaça de romper-se a tradição entre velha e nova geração. Muito bamba enrolando a bandeira. Quase o apocalipse. Mas o amor pelo samba, a dedicação de toda uma vida e em muitos casos a necessidade financeira fazia com que músicos consagrados se submetessem às novas práticas, capitaneadas pela prepotência juvenil da garotada que pilotava as mesas de som compradas no mundo exterior. Com o tempo, a coisa foi se assentando. Tanto que nas tradicionais casas de gafieira no Centro do Rio, aquele gingado gostoso deu lugar a um estilo mais sóbrio, mais palaciano e – por que não dizer – mais democrático, afinal agora teriam lugar nos clubes todos os cinturas largas do planeta. Obviamente que volta e meia um cidadão revisitava um picadinho, uma encoxada, mas tal forma de conduta, fosse por distração ou intencionalmente, atraía os olhares atravessados dos frequentadores, que reclamavam o respeito ao moderno estatuto do salão. Enfim, tudo evolui.[2] E nessa marcha passaram-se duas gerações.

A mudança se consolidou. Não somente no que concerne ao estilo musical mas também, e horizontalmente, no tocante às roupas, às gírias e finalmente ao glorioso e todo poderoso Mercado. Constantemente éramos abençoados com workshops internacionais de samba e pagode. Percussionistas franceses, alemães, ingleses, italianos e ex-soviéticos também – entre outras culturas de alto padrão – nos davam tips de como tocar de forma eficiente o pandeiro, o répiq du main, o tamborim. Claro, o músico brasileiro não havia se desvalorizado, pelo contrário! Estava equiparado aos mais altos, loiros e de olhos azuis sambistas do planeta! Um grupo de pagode formado na Vila Carrão, o Intoxicassamba, liderado pelo genial Celso Gordo, fez uma turnê que passou por quase dez países da Europa (a Interpol estima que foram doze), no que foi considerada a turnê mais cara da história do samba, com cachês superiores aos dos artistas de Funk Sertanejo e do Gospel Proibidão. Nova geração bombando. Um categoria nova dentro do universo do samba surgiu numa conceituada roda de partido alto na freguesia de Aspudden[3]: o malabarismo instrumental. Um músico podia ser excelente, mas certamente não estaria entre os grandes se não desempenhasse certos tricks com seu instrumento. O público ia à loucura. Aliás, o partido alto estava definitivamente globalizado. De acordo com as regras, teria que ser realizado em apenas uma língua, com a excessão do inglês, aceito como idioma complementar universal em qualquer rad von samba do mundo civilizado – desde que rimasse. Mas tinha outra coisa. Os gringos – talvez pela incapacidade genética de assimilar a cadência do samba, deram uma acelerada no ritmo. E a partir de então, passaram a dominar o cenário, pois ninguém acelerava um samba como eles. O croata naturalizado carioca e depois convertido em croata novamente Douglas Zangler (nome artístico), era considerado a maior revelação do pagode mundial. Compunha em três idiomas, assoviava e chupava cana. Disputava a preferência geral com o austríaco Reinhardzinho de Viena, que além de exímio compositor e estrela de comercias televisivos, acabara de emplacar um samba-enredo na filial belga da Imperatriz Leopoldinense. Era isso. Escolas de Samba começavam a abrir os trabalhos na Europa, oferecendo bolsas de estudos e rapidamente viraram o sonho de consumo de nossos jovens sambistas.

Porém, como alertou Moysés Parahyba em seus tempos de caverna, “a consciência é algo como cagar no escuro; você não tem clareza do que faz mas sente que está fazendo merda”. E começou a dar ruim aqui pra nós :/

Com a população envelhecendo, e com os mais velhos insistindo em dizer que no meu tempo é que era bom, a ideia de que o samba havia perdido a bossa começou a ganhar certa atenção da moçada mais sapiente. E fizeram até um canal no youtube para dar voz aos baluartes. O assunto ganhou a imprensa. A publicidade ganhou o assunto. E a ficha foi caindo. (Continua na segunda parte…)

 

SEGUNDA PARTE

 

…foi caindo…

 

TERCEIRA PARTE

 

…e uma voz falou:

 

– Deixa cair!

 

Essa frase, proferida por uma fonte plasmática – isto é, aparentemente sem um emissor fisicamente presente ao local, no contexto de uma noite de lua nova, num casarão situado no bairro francês de Santa Teresa, no Rio de Janeiro – ativou no córtex pré-frontal de todos os brasileiros nascidos depois de 1982 e presentes àquela reunião, uma descarga de reminiscências físicas e mentais: sambas, maxixes, pagodes, marchas-rancho, sambas-canções, clássicos carnavalescos etc. Apesar disso, a noite seguiu tranquila e sem grandes novidades. Horas depois, entretanto, aquelas mesmas pessoas experimentaram durante o sono uma visão: do céu vermelho descia um querubim cor de feijão. Ele tirava do cabelo um rolinho de arame, em seguida desenrolava o arame prendendo uma ponta no dedão do pé direito e a outra no indicador da mão esquerda. E tocava a primeira parte do Brasileirinho. Depois fazia o top-top e esvaía-se na brisa quente da manhã que despontava na linha do mar. “O suor descia que nem cachoeira pelo rosto dele, mas ele tinha a expressão de uma criança. Pulou da cama e saiu sambando. Eram três da manhã!” – foi o relato da companheira de um dos indivíduos acometidos pelo sonho, o sr. Pedro Sunga, morador de Laranjeiras. Entre os demais receptores da misteriosa narrativa onírica, estavam moradores de diversas localidades do globo, todas elas situadas no Rio de Janeiro. Sendo que além do já citado sr. Sunga, havia o sr. Felicio dos Santos, natural da Urca mas também um (antiquíssimo) morador de Laranjeiras. De forma que isso bastou para formarem um bloco de carnaval, intitulado Talabartes Alvissareiros da Fanfarra Onírica Dorme e Acorda – o T.A.F.O.D.A.

Vistos a princípio como um bloco precocemente senil e viajandão, eles foram aos poucos ganhando espaço entre a comunidade do C.V. (Cosme Velho) e depois do P.T. (Planeta Todo). Quer dizer, sucesso mundial. Mas não foi de graça. Imagine-se: brasileiros bem sucedidos em levar a antiga e malemolente cultura nacional de volta ao mundo dos vivos só tinha de ser algo lamentável e, por que não dizer, até afrontoso e, por que não dizer, até perverso e, por que não dizer, até criminoso e, por que não dizer, até démodé. Foram punidos. Difamados e boicotados pela imprensa especializada e pela crítica oficial, foram enfim abatidos pelo obscurantismo.

 

Naquele curto período de tempo em que o bloco brilhou, foi como se, no âmbito esportivo, a Taça Jules Rimet reaparecesse em sua forma original e inspirasse as antigas paixões entre a torcida e nosso autêntico futebol. Mas a sabotagem que destruiu aquela iluminada turma da resistência musical fez derreter novamente e para sempre nosso passado de glórias.

 

E o samba nunca mais foi o nosso samba.

 

Felipe Cohen, julho de 2029

 

[1] há no mercado carioca o caso clássico do músico que trabalha duro e continua duro após trabalhar

[2] carece de fontes

[3] 59° 18′ 20″ N, 18° 0′ 3″ E

 

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